Em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, o sistema de saúde municipal entrou em colapso no começo desta semana: com os leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do município lotados por causa da pandemia, 12 pacientes morreram à espera de uma vaga na rede estadual. Desses, cinco precisavam de hemodiálise por causa de sobrecarga renal causada pela covid-19, mas todos morreram sem atendimento.
As mortes de Taboão da Serra são o prenúncio de um segundo colapso de saúde que o Brasil pode viver em breve, causado pela falta de hemodiálise, que hoje fornece suporte à vida a 140 mil brasileiros. É o que a reportagem ouviu após consultar mais de 70 gestores de pequenas e médias clínicas de hemodiálise espalhadas por todo o país.
A pernambucana Gabriella Moreira acaba de dar à luz sua primeira filha. A jovem de 26 anos está viva por causa de três sessões de hemodiálise na semana, já que convive, desde o nascimento, com rins policísticos e perdeu completamente a função renal aos 10 anos. Sua mãe lhe doou um rim que durou apenas cinco anos.
Aos 15, Gabriella fez hemodiálise pela primeira vez, até receber um segundo transplante, dessa vez de um doador falecido. Mas o rim parou de funcionar um ano e meio depois, quando a moça tinha apenas 18 anos.
Desde então, Gabriella faz pelo menos três sessões de hemodiálise na semana numa clínica a 10 minutos de carro da sua casa, em Vitória do Santo Antão, em Pernambuco.
Nesses oito anos de tratamento, fez faculdade, formou-se nutricionista, casou e engravidou.
"Minha filha é um milagre porque é mais difícil para uma paciente renal crônica engravidar. Tudo que eu consegui conquistar de bom na minha vida eu devo à hemodiálise, sem ela eu não teria sobrevivido", diz ela à BBC News Brasil. Gabriella é usuária do SUS e faz as sessões de diálise na Clínica do Rim de Vitória de Santo Antão.
Trata-se de uma unidade privada, mas que depende totalmente dos recursos que recebe do sistema público. Durante a gravidez, Gabriella fez seis sessões de diálise na semana, de segunda a sábado, 24 sessões no mês. Mas o SUS só pagou por 18 dessas sessões.
"O restante somos nós que bancamos", conta a nefrologista Suzana Morais de Oliveira Melo, gestora da clínica. "Temos levado muitos prejuízos, mas sabemos que se não dialisarmos o paciente pode morrer", lamenta.
A clínica onde Gabriella faz diálise está endividada e corre o risco de fechar ainda em 2021. Se isso acontecer, Gabriella e outros 329 pacientes de seis municípios ficarão sem o atendimento e terão que ser transferidos pela Secretaria de Saúde local para unidades mais distantes, e 82 funcionários serão demitidos.
A unidade de seis sócios atende no local há 20 anos, com todos os pacientes vindos do SUS.
A gestora da clínica conta que os prejuízos vêm se acumulando mês após mês: "Nosso equilíbrio financeiro já era apertado por causa da falta de reajuste da tabela do SUS há mais de quatro anos. A situação se agravou demais na pandemia, com a subida astronômicas dos (preços dos) insumos e os custos de equipamentos novos de proteção e afastamentos de funcionários. Hoje, meus custos mensais são de R$ 930 mil, e minhas entradas são de R$ 860 mil".
A gestão tem usado empréstimos para honrar a folha de pagamento e feito todos os cortes possíveis: três médicos já foram demitidos. Exames complementares oferecidos aos pacientes, como raio-x e ultrassonografia, foram cortados.
O almoço, essencial para a recuperação no meio das sessões cansativas de diálise, foi substituído por um lanche. A clínica também deixou de investir em novos equipamentos de diálise, que ficam obsoletos em 10 anos.
Segundo a gestora, os sócios também não recebem remuneração há meses. "Antes eu ainda tirava R$ 6 mil por mês pra me sustentar, mas agora nem isso eu tenho mais. A minha vida pessoal se tornou um caos, eu e a clínica estamos no limite", afirma Suzana.
No Centro de Nefrologia de Itabaiana, no agreste sergipano, o cenário é parecido. O nefrologista José Roberto Nogueira Lima pensa em fechar a clínica nos próximos seis meses por causa das dívidas com fornecedores de insumos médicos, que se acumulam. "Nossos pacientes são muito pobres e só podem comer o que têm em casa, geralmente muita macaxeira, cuscuz e banana prata".
Os alimentos, ricos em sódio e potássio, são como veneno para um paciente renal crônico, que passa a precisar de mais sessões de diálise."Alguns dialisam cinco vezes na semana, mas o SUS só cobre quatro sessões, o resto nós bancamos". Se a clínica fechar, 130 pacientes podem ficar sem atendimento e 32 funcionários podem ser demitidos.
A falta de reajuste da tabela do SUS vem de anos. Recentemente, esse quadro foi agravado por uma longa lista de outros custos novos e sufocantes que a clínica tem suportado. "A caixa de 100 luvas cirúrgicas antes da pandemia custava R$ 5, agora custa por volta de R$ 90", relata o médico.
A heparina — substância usada para impedir coagulação sanguínea nas sessões — hoje custa por volta de R$ 35 por ampola, diz José Roberto. "Antes da pandemia, comprávamos por R$ 14, R$ 15".
De 70 gestores de unidades de diálise em 15 estados brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil, 47 estão enfrentando algum tipo de dificuldade para fazer os investimentos essenciais e honrar a folha de pagamento. Desses, 18 consideram reduzir a capacidade de atendimento, demitir funcionários ou até mesmo fechar as portas nos próximos seis meses.
"Nossa empresa se endividou por causa da tremenda inflação dos insumos", conta Karla Israel, gestora de uma clínica em Manaus.
"Ainda não recebemos pelos atendimentos de dezembro e janeiro, o custo dos insumos aumentou significativamente e o valor das sessões de hemodiálise do SUS está sem reajuste há muitos anos", reclama Maria Amélia Abdo Barreto, que administra uma clínica em Adamantina (SP).
No Rio, "praticamente todos os prestadores de nefrologia (do Estado) estão quebrados, não conseguem mais atender", afirma o executivo Bruno Haddad, presidente da DaVita Tratamento Renal, uma das maiores multinacionais do ramo, que administra 76 clínicas de diálise no país, oito delas no estado fluminense.
As unidades privadas recebem do orçamento da saúde por procedimento realizado, com base numa tabela que não é reajustada há quatro anos, e isso explica parte dos problemas que o setor vem experimentando: atualmente, o valor pago pelo SUS por sessão de hemodiálise é de R$ 194,20.
O último reajuste foi em janeiro de 2017, quando a remuneração da sessão passou de R$ 179,03 para o valor atual. Se corrigido pela inflação medida pelo IGP-M, em janeiro de 2021, esse valor deveria ser de R$ 281,63.
De acordo com Carlos Octávio Ocké-Reis, economista do Ipea e especialista em economia da saúde pública, o fenômeno de degradação da saúde pública tem ligação direta com a emenda constitucional 95, a PEC do teto de gastos, que criou um novo modelo de financiamento do SUS a partir da inflação passada.
"A implantação dessa política num país que já apresentava um sistema universal de saúde subfinanciado mostra seus resultados nefastos nas filas de cirurgia eletiva, consultas com especialistas e tratamentos de média e alta complexidade como a diálise. De lá pra cá, o gasto público per capita com saúde vem diminuindo a passos largos", explica.
É nesse cenário de arrocho de remunerações do SUS que a capacidade financeira das clínicas de hemodiálise tende a se debilitar mais. A salvação nos últimos anos tem sido atender planos de saúde privados, que remuneram melhor, para equilibrar a defasagem do SUS e fechar a conta.
"Quem gere clínica de diálise sabe que uns 15% de pacientes de convênio equilibram os 85% atendidos pelo SUS", afirma José Roberto, da clínica de Itabaiana (SE).
Entre os grandes do mercado, a lógica se assemelha: "uma clínica que só atende pacientes do SUS não funciona. Mesmo uma clínica com um mix razoável com convênios particulares já sofre muito e não consegue se sustentar", afirma o presidente da DaVita no Brasil. Fonte BBC