25/04/2021 às 21h47min - Atualizada em 25/04/2021 às 21h47min

A intérprete que descobriu na aula de Libras que pastor abusava de adolescente

Gazeta Rondônia
BBC News Brasil

Em seu primeiro dia de aula, a menina de 13 anos chega acompanhada de um homem à escola nova, em um bairro de São Paulo, em 2016. Ele se apresenta como responsável pela adolescente e faz uma série de imposições.

O colégio regular incluía alunos como a adolescente, que tem deficiência auditiva e aprendia a Língua Brasileira de Sinais.


A intérprete Júlia* conta que estranhou a abordagem. Segundo ela, ele disse: "Eu sou pastor e cuido dos interesses da família dela. Estou conversando porque quero que você me conte caso algum garoto se aproximar dela. Quero saber se tem menino mandando carta, essas coisas. Como ela foi abusada em outra escola, eu tenho essa preocupação".

Júlia disse respondeu de forma protocolar. "Em primeiro lugar, sou intérprete e não me reporto a você. Se você tiver alguma dúvida, pode procurar a direção da escola". O homem desconversou, mas tentou abordá-la sobre o assunto outras vezes.

"Mas eu não dei abertura", disse a educadora em entrevista à BBC News Brasil.
 
Um mês depois, ela descobriu durante uma aula de libras que o homem abusava, quase diariamente, da garota. Ele pagava uma mensalidade de R$ 1.500 aos pais da adolescente para que ela dormisse na casa dele alguns dias por semana. Tudo revelado pela menina, segundo Júlia, em poucas semanas de aula.

Um levantamento organizado pelo Instituto Liberta aponta que o Brasil registra cerca de 500 mil casos de exploração sexual infantil por ano. Isso ocorre quando um adolescente de 14 a 18 anos faz sexo com um adulto em troca de algo. O país só tem menos casos que a Tailândia.
 
Sinais
 
Até ter certeza do que ocorria, a intérprete ficou atenta a uma série de sinais. Especialistas em educação e psicologia infantil disseram à reportagem que tal atitude é essencial para descobrir abusos. Júlia relatou que logo percebeu que a adolescente apresentava uma profunda tristeza desde os primeiros dias de aula, chamando a atenção pela fala desconexa e uma aparente angústia.

"Ela era uma adolescente muito bonita. Chamava muito a atenção dos meninos, mas por ser surda e estar num ambiente de maioria ouvinte, ocorre uma abertura maior com o intérprete, que precisa ter essa sensibilidade e construir um elo de confiança com o aluno", conta.

Aos poucos, a intérprete se aproximou da menina e identificou alguns desvios de comportamento. Ela lembra ter notado que a garota mentia em algumas situações, por exemplo ao justificar ausências, e dava sinais de que queria contar algo. Durante um mês, a adolescente registrou mais faltas do que presenças na escola.

Questionada, ela justificou as ausências dizendo que dormia muito tarde por conta de cerimônias religiosas de que participava na igreja, na qual o homem que a levava para a escola era pastor.

Com mais intimidade, a adolescente então perguntou para a professora o que ela achava de um homem se relacionar com uma menor de idade. E logo revelou que costumava dormir na casa do pastor, lembra Júlia. Os dois sozinhos, já que a mulher do líder religioso dormia no quarto ao lado.

"Aquilo mexeu muito comigo porque era a mesma religião que a minha. Comecei a entrar em parafuso. Eu desconfiava desde o começo, mas gradativamente ela começou a me contar que ele a levava para passear, como um casal", contou Júlia.

O homem, enquanto isso, continuava insistindo para que a professora fizesse relatórios sobre o comportamento da estudante.

"Ele queria saber cada passo dela, como um gavião. É diferente de um pai ou responsável preocupado. Por que uma menina que tem pai e mãe precisa de um homem para levá-la para cortar o cabelo, levar para viajar?", questiona.
Júlia disse à BBC que então avisou o diretor da escola e eles descobriram que o documento de tutela que o pastor tinha entregado na escola era falso.

Certo dia, conta a intérprete, o pastor levou a mulher dele à escola. A esposa parecia uma pessoa abatida, que olhava sempre para o chão, era inexpressiva e tinha uma postura corporal submissa ao marido.

A menina começou a confiar cada vez mais na intérprete e a lhe contar detalhes da rotina com o pastor.

"Ela queria me dizer algo de forma indireta, mas sem dizer claramente: 'Eu transo com ele'. A intenção era pedir socorro, mas por outro lado deixava claro que gostava do conforto proporcionado por aquela situação. Ela ganhava roupas e dinheiro, e isso fazia diferença na vida dela porque tinha irmãos e era pobre. Isso criava um conflito na mente dela", relata.

A intérprete disse que a garota era levada de carro todos os dias pelo pastor. Ao ser questionada sobre a mulher dele, a garota respondia que ela praticamente não existia para o marido e que a via chorar frequentemente.

A gota d'água para Júlia foi quando a aluna revelou que, além de acompanhar a garota à consulta médica como se eles formassem um casal, o homem ainda orientava a adolescente sobre como ela poderia se prevenir de uma gravidez indesejada e manter cuidados íntimos. No mesmo dia, Júlia acionou o Conselho Tutelar.

A mãe da garota foi chamada e, segundo a intérprete, ficou indignada com a denúncia e tentou agredi-la. "Disse que eu estava inventando. A menina também negou tudo para a delegada, que percebeu e pediu exames de corpo de delito que comprovaram o abuso."

Xingada e culpada

"Ela (a mãe) me xingou, gritou e disse para não acreditarem em mim porque o pastor só queria ajudar a família. Fomos para a delegacia fazer o exame de corpo de delito no mesmo dia e foi constatado que a menina tinha sido estuprada", afirmou a professora. Em depoimento a uma delegada, a garota negou tudo o que tinha contado à professora. A intérprete se afastou da escola por alguns dias. Quando voltou, soube que o caso estava sendo investigado e que a família se mudaria.
 
Um problema frequente
 
Desde então, Júlia diz que não tem notícias do caso. Procurada pela BBC News Brasil, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou em nota que o caso foi investigado por uma delegacia da mulher e depois foi encaminhado à Vara da Infância junto com os laudos periciais.

"Posteriormente, o processo administrativo e a Ação Judicial Civil foram arquivados pelo Judiciário", encerra a nota enviada pela assessoria de imprensa do órgão.

A intérprete, porém, disse que esse não foi o primeiro caso de abuso que ela descobriu.

"Em 2002, uma menina me contou que dormia com papai e a mamãe dela e que ele fazia 'carinho' nela. Depois, ela me perguntou se é normal sentir dor quando faz xixi. Eu disse que não. Ela foi levada para o Conselho Tutelar e exames apontaram que ela estava com HPV, contraído do próprio pai", afirmou.

A presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, diz que o papel da escola é muito importante para identificar casos de abuso.

"Quando você tem a informação de que mais de 70% dos casos acontecem dentro da própria residência, o papel da escola é muito importante. Se você está nesse ambiente de segurança comprometido, qual outro lugar a criança pode buscar ajuda?", questiona.

Sem esse contato com a escola, durante a pandemia, Luciana Temer acredita que a situação tenha piorado.

Toda a carga emocional absorvida pela intérprete também teve um preço. Durante esses anos após o abuso da aluna, a professora fez tratamento psicológico e recebeu apoio dos amigos. E, ao se lembrar do caso do pastor abusador, disse ter a sensação de missão cumprida. "Penso que ele não vai fazer mal pelo menos para essa família."

Ela conta, porém, ter se afastado do caso.

"Com a terapia, eu entendi que estou nesse ambiente, mas não sou dele. Eu só sou um canal e entendo minha função de fazer parte dessa intermediação entre o aluno e os órgãos responsáveis. Não me aproprio mais daquilo. Quando fiz isso, eu adquiri uma úlcera e pensei que fosse morrer. Não que isso não me machuque ou afete, mas eu tento passar uma régua", conta a intérprete.

A BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, responsável pelos conselhos tutelares, mas a pasta disse que cada conselho é independente e que não obteve mais detalhes sobre o caso.

Melhor amigo

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, entre professores, acadêmicos e conselheiros tutelares disseram que o professor é a pessoa de maior confiança da criança e do adolescente para denunciar casos de abuso e exploração.

O Instituto Liberta lançou há três anos um desafio para que os profissionais da educação estadual de São Paulo fizessem projetos que denunciassem a violência sexual. Os vencedores tiveram a oportunidade de apresentá-lo na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, parceira do Instituto, e conhecer experiências de outras escolas.
 
Na plataforma desenvolvida pelas professoras, o estudante escolhe um docente em quem ele confia e se identifica para conversar reservadamente duas vezes por semana

Um dos projetos vencedores do concurso Instituto Liberta foi uma plataforma de bate-papo desenvolvida pelas professoras Bruna Danielle Guimarães Zafani e Lívia Aparecida Alves, ambas de 32 anos. Elas dão aulas para alunos do ensino médio em Ribeirão Preto, no interior paulista.

Na plataforma, o estudante escolhe um docente em quem ele confia para conversar reservadamente duas vezes por semana. A intenção é falar não apenas da vida acadêmica, do ambiente escolar, mas também revelar situações que os incomodam fora da escola.

Seis meses após as rodas de conversa promovidas pelo grupo do Estado de São Paulo, houve um aumento de 300% no registro pelo sistema de ensino de ocorrências de violência sexual.

"Eles fazem relatos pessoais. Falam sobre o relacionamento com os pais e até violação sexual. Em um ano, recebemos relatos de abusos cometidos por padrasto, amigo do pai, tio e cunhado", conta Bruna.

Elas dizem que a intenção é dar o exemplo para que outras escolas criem canais de comunicação entre professores e alunos. Para isso, Bruna e Lívia criaram o canal "Anjos do Sol" no YouTube para orientar outros professores.

O próximo passo é criar um aplicativo para denúncia rápida e sigilosa. A intenção é fazer uma interface amigável, com desenhos e informações para a vítima. Haverá a opção para o aluno mandar uma mensagem pelo WhatsApp e até Instagram.

"Durante a visita aos EUA, encontramos várias ONGs que combatem o abuso e violência infantil. O principal ponto é seguir a Lei da Escuta Ativa, que é fazer a criança ou adolescente relatar apenas uma vez o que ocorreu para evitar revitimização", afirmou Lívia Alves.

A diretora do Instituto Liberta, Cristina Cordeiro, disse que contar diversas vezes um caso de abuso pode causar traumas.

"Há casos em que as crianças contam a situação diversas vezes: para a professora, depois a um médico, delegada, e isso gera um grande desgaste emocional, que pode se tornar permanente. Para piorar, muitas vezes a família não enxerga o abuso e imagina que é algo bom para a filha de 13 anos ter um relacionamento com um fazendeiro rico", afirma Cordeiro.

O instituto criou uma cartilha para orientar os profissionais de educação sobre como tratar sobre o tema da exploração sexual na escola. O documento ensina como conversar com as vítimas e ainda quais condutas tomar a partir do momento em que recebem a denúncia.

A professora Bruna Zafani diz que elas atenderam casos em que não apenas a família apoiava, mas em que a vítima também se apaixonou pelo abusador.

"Ela não entendia que era um abuso. Aprendeu que aquilo era uma relação de carinho normal e inclusive ganhava presentes. Informar é o primeiro passo. As vítimas muitas vezes não sabem o que é um abuso, que estão sendo sexualmente exploradas", afirma.

Ambiente seguro

Luciana Temer conta que, em uma parceria com a Prefeitura de São Paulo, o Instituto Liberta criou nos últimos meses um site interativo com uma inteligência artificial para identificar quando o aluno da rede pública está deprimido. Ao chegar num nível de tristeza estabelecido, ele pergunta se o adolescente gostaria de conversar com um professor e aciona um plantonista.

"Identificamos 51 casos de violência sexual e 200 casos de outros tipos de violência nesse período. Isso demonstra a importância óbvia de a escola ser um espaço onde a criança possa pedir socorro. Sem escola, criamos uma solução virtual e a gente gostaria que isso pudesse ser expandido", afirmou.

Luciana Temer afirma que, em vez de contar aos plantonistas, muitos alunos preferiam falar com seu próprio professor quando havia uma relação de confiança.

"A escola precisa estar aberta para ouvir esses alunos. O mais importante é que a escola fale sobre violência sexual e sexualidade com crianças e adolescentes. No Reino Unido, isso é uma política pública e evita casos. Quando fala sobre o corpo do aluno e ele percebe alguma violação nesse sentido, ele fala 'não'. E nesse o adulto recua. Porque muitas vezes o adulto se usa da ignorância da criança para atacá-la. Quando ela sabe que aquilo não é um carinho e incomoda, ela resiste".

*O nome da intérprete foi alterado para preservar sua identidade.

Fonte: BBC News Brasil.

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