Na recuperação da dependência do álcool, estratégias terapêuticas que explorem a relação do paciente consigo, com os outros e com o próprio sofrimento podem ser mais eficazes que a exclusiva tentativa de manter o paciente sóbrio. É a hipótese levantada por pesquisa realizada pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em colaboração com a Universidade de Fortaleza (Unifor) e com a Universidade de Oxford. Os dados, publicados na quinta (16), na revista científica “Psychopathology”, podem colaborar com a formulação de terapias focadas na qualidade de vida de pessoas em recuperação.
Para compreender como a recuperação na dependência do álcool é vivenciada, os pesquisadores entrevistaram oito indivíduos adultos que estão passando ou já passaram por esse processo. As entrevistas em profundidade foram feitas de forma online entre outubro de 2021 e fevereiro de 2022 e foram guiadas pela pergunta “como você vivenciou a recuperação da sua dependência de álcool?”. As respostas foram analisadas e categorizadas conforme iam se repetindo.
Todos os participantes descreveram a aceitação da dependência de álcool como um elemento crucial às suas experiências de recuperação, mas outras nuances também foram identificadas como partes relevantes do processo. A análise revelou cinco transformações vividas, entre elas, as mudanças na relação consigo mesmo, com os outros, com o sofrimento e com o próprio álcool. Os entrevistados descreveram que, durante a recuperação, desenvolveram a aceitação de quem são, a capacidade para lidar com conflitos interpessoais, a tolerância às frustrações da vida e habilidades para sustentar o sofrimento sem o recurso do álcool.
O entendimento da recuperação como um processo contínuo e ininterrupto também foi uma das categorias que apareceram nos discursos dos entrevistados, que afirmaram estar se esforçando diariamente para se manter em recuperação.
Para Victor Monteiro, um dos autores do estudo, o método desta pesquisa realizada durante seu mestrado na Santa Casa de São Paulo também permitiu à equipe compreender que o uso do álcool possui um significado existencial para as pessoas com dependência. “Não é uma busca pelo álcool em si, mas pela experiência que o álcool fornece ao paciente. Ao beber ele pode querer entorpecer um sofrimento, esquecer de algo, se sentir seguro, corajoso, contente, confiante”. Segundo o pesquisador, essa informação pode ser importante de ser considerada pelos profissionais de saúde durante os tratamentos de alcoolismo. “Apenas tirar esta experiência dele sem antes compreender o papel e o valor que o paciente lhe atribui pode ser pouco produtivo à recuperação”, completa.
Ao revelar as conexões que pessoas com dependência fazem com o álcool, o estudo abre caminho para se pensar em estratégias diferentes de auxílio de pacientes na recuperação da dependência alcoólica. Segundo Monteiro, muitas práticas em saúde mental usadas atualmente ainda estão centradas em estratégias de restrição ou ajuste do uso do álcool, algo que os autores do estudo consideram que necessita ser revisto.
Monteiro salienta que novos estudos são necessários para apoiar e ampliar os achados da pesquisa e que estudos qualitativos que se proponham a investigar a recuperação através de um acompanhamento dos pacientes – desde seu início até sua estabilização – podem ajudar cientistas e profissionais da saúde a compreender melhor este processo.
Ainda assim, ele é positivo quanto à contribuição dos resultados da pesquisa a práticas terapêuticas com pessoas dependentes do álcool. “Cremos que essas pessoas podem se beneficiar de intervenções clínicas que os ajudem a reconstruir suas perspectivas sobre si próprios, desenvolver uma relação de maior aceitação do sofrimento inerente à vida e elaborar novas formas de lidar com conflitos interpessoais sem o recurso exclusivo do álcool”, finaliza.