10/08/2024 às 11h58min - Atualizada em 10/08/2024 às 11h58min

29 anos do Massacre de Corumbiara

Foto: Rede Amazônica

Há 29 anos, em 9 de agosto de 1995, centenas de trabalhadores rurais sem-terra, que reivindicavam a desapropriação da Fazenda Santa Elina, eram brutalmente atacados por policiais e pistoleiros durante o Massacre de Corumbiara. A chacina deixou ao menos 12 mortos e dezenas de feridos, sendo um dos mais violentos conflitos rurais ocorridos no Brasil desde a redemocratização.

Nas últimas quatro décadas, o estado de Rondônia tem sido palco de uma série de conflitos violentos pela posse da terra, acumulando diversas chacinas e assassinatos de camponeses. O crescimento dos conflitos rurais no estado é uma consequência do modelo de desenvolvimento econômico implementado na região pela ditadura militar, que aprofundou a desigualdade social e fomentou a concentração fundiária. Visando expandir a fronteira agrícola em Rondônia e estimular a ocupação do território, o regime militar ofereceu incentivos fiscais e facilitou a aquisição de lotes de terras por empresários e produtores rurais de outras regiões.

A permissividade das autoridades acabou por fomentar a grilagem e o avanço dos latifundiários sobre terras indígenas e as pequenas lavouras, agravando as disputas no estado. Em 1985, vários indígenas foram assassinados por latifundiários durante o Massacre dos Omerê — um episódio denunciado pelo indigenista Marcelo Santos, mas ignorado pelo governo. Outras três chacinas ocorreriam em Rondônia em 1987: o assassinato de três posseiros em Jaru, a execução de seis camponeses em Pimenta Bueno e a matança de outras seis pessoas na Terra Indígena Roosevelt.

A redemocratização trouxe conquistas importantes para a luta camponesa. A Constituição de 1988 reconheceu o princípio da função social da terra e a Lei Agrária agilizou o processo de desapropriação e destinação de terras para assentamento. Os latifundiários reagiram com violência aos avanços sociais nas questões fundiárias, recorrendo cada vez mais à pistolagem para intimidar e atacar os camponeses e sem-terra. Somente em 1995, o Brasil registrou 440 conflitos no campo. Desses, 15 ocorreram em Rondônia — e o mais sangrento deles teve como cenário a Fazenda Santa Elina, em Corumbiara.

A Fazenda Santa Elina era um enorme latifúndio improdutivo, com uma área superior a 18 mil hectares. Seu proprietário era o empresário paulista Hélio Pereira de Morais, que a comprara do famoso pecuarista Ovídio Miranda de Brito, alcunhado “o rei do gado”.

A fazenda fora criada através da junção irregular de lotes leiloados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) durante a ditadura militar. A ausência de documentos comprovando a aquisição de partes da propriedade sugeria uso de grilagem. Além disso, a legislação proibia a concentração de múltiplos lotes de terra nas mãos do mesmo proprietário. Por esses motivos, os movimentos de luta pela democratização da terra reivindicavam a destinação da fazenda à reforma agrária.

Em 14 de julho de 1995, 600 famílias de trabalhadores rurais sem-terra (cerca de 2.500 pessoas) ocuparam uma área de 150 hectares da Fazenda Santa Elina. A ocupação visava denunciar a situação irregular da fazenda e pressionar o poder público a efetuar a sua desapropriação e distribuição para os sem-terra.

O local escolhido para montar o acampamento ficava em uma área limítrofe da fazenda, lindeira ao Projeto de Assentamento Adriana — uma gleba que havia sido reservada pelo INCRA para abrigar antigos posseiros da região, convertida em assentamento de famílias sem-terra em 1993. Boa parte dos trabalhadores rurais que participaram da ocupação da Fazenda Santa Elina eram famílias que não foram contempladas pelo Projeto de Assentamento Adriana.

O acampamento era composto por cerca de 50 barracos. Os camponeses se organizaram em várias comissões (cozinha, alimentação, limpeza, saúde, etc.) e iniciaram de imediato o trabalho na terra, limpando e preparando o terreno para o cultivo de alimentos.

O acampamento recebia novas famílias todos os dias, oferecendo comida, abrigo e a esperança de conquistar um pedaço de terra a vários camponeses desempregados da região. Entre os líderes da ocupação estavam Adelino Ramos e Cícero Pereira Leite Neto, ambos ex-integrantes do MST e coordenadores do movimento que dera origem ao Projeto de Assentamento Adriana. Claudemir Gilberto Ramos, filho de Adelino, e o professor João, secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara, também auxiliavam na mobilização dos sem-terra.

A ocupação da Fazenda Santa Elina provocou a ira dos fazendeiros da região — que já estavam incomodados desde a instalação do Projeto de Assentamento. Jagunços e capangas começaram a aparecer no acampamento para provocar, assediar e intimidar os sem-terra. A justiça foi bastante célere em atender as demandas dos latifundiários.

Em 18 de julho, apenas quatro dias após o início da ocupação, uma liminar determinando a reintegração de posse foi expedida. No dia seguinte, um grupo de policiais foi até o acampamento para efetuar o despejo das famílias. Os sem-terra resistiram à reintegração, entoando palavras de ordem e reafirmando a legitimidade da luta pela terra. Seguiu-se um tumulto e um camponês foi ferido a bala por um policial.

O governador de Rondônia, Valdir Raupp (PMDB), criou uma comissão para negociar uma solução junto aos sem-teto. Faziam parte da equipe um secretário do governador, um deputado e um vereador, um diretor do INCRA e um representante do Instituto de Terras de Rondônia (ITERON). Membros da comissão chegaram a aventar a hipótese de desmembrar um lote de 500 hectares da propriedade para abrigar os sem-terra em uma fazenda coletiva. Mas a ideia desagradou profundamente o latifundiário Antenor Duarte do Vale, vizinho da propriedade.

Beneficiado com a concessão de 43 mil hectares de terra doados pela ditadura, Antenor era muito influente na região. Ele fora um dos fundadores da União Democrática Ruralista (UDR) — uma das mais reacionárias organizações patronais do agronegócio — e acumulava uma série de denúncias por uso de mão de obra escrava em suas fazendas.

Antenor passou a pressionar as autoridades pelo cumprimento da reintegração de posse. No dia 1º de agosto de 1995, a justiça se somou à pressão, emitindo uma ordem de cumprimento da reintegração.

Quase 200 policiais militares foram mobilizados para a operação — incluindo 46 agentes do Comando de Operações Especiais (COE). Eles portavam revólveres calibre 38, escopetas calibre 12 e metralhadoras de 9 mm. Além dos agentes, jagunços e pistoleiros contratados pelos fazendeiros da região também participaram da ação.

O ataque começou na madrugada de 9 de agosto de 1995. Após cercarem o acampamento, os policiais arremessaram bombas de gás lacrimogêneo e dispararam rajadas de tiros. Depois, invadiram o acampamento e iniciaram o massacre, executando sumariamente os sem-terra.

Ao menos 12 pessoas foram mortas na operação, incluindo 9 sem-terra. A vítima mais jovem era Vanessa dos Santos Silva, uma menina de 6 anos, assassinada a tiros. Os outros camponeses assassinados eram Nelsi Ferreira, Enio Rocha Borges, José Marcondes da Silva, Ercílio Oliveira Campos, Odilon Feliciano, Ari Pinheiro Santos, Alcino Correia da Silva.

O número efetivo de vítimas, no entanto, pode ser maior. Há sete pessoas que estão registradas como “desaparecidas” desde o massacre — e os relatos dos sobreviventes apontam muitas outras nessa mesma situação.

O corpo do camponês Sérgio Rodrigues Gomes, levado numa camionete no dia da chacina e dado como desaparecido, foi encontrado 15 dias depois, boiando no Rio Tanar, com tiros na cabeça e marcas de tortura. Dois policiais e um homem não identificado também morreram durante o ataque. O vereador Nelinho do PT, apoiador dos sem-terra, foi assassinado alguns meses depois.

As vítimas do massacre foram sepultadas como indigentes, para dificultar a identificação. A operação deixou ao menos 64 pessoas feridas e mais de 350 camponeses foram presos. O acampamento foi destruído e incendiado. Os sobreviventes relataram que foram submetidos a torturas e espancamentos que se estenderam por mais de um dia. Mulheres foram usadas como escudos humanos por policiais, durante trocas de tiro com alguns sem-terra que tentaram reagir à chacina.

O governador de Rondônia tentou justificar a matança responsabilizado os sem-terra pela violência. O inquérito aberto para apurar a chacina resultou no indiciamento de 24 pessoas. O julgamento somente ocorreria no ano 2000 e seria marcado por irregularidades e injustiças. O local do massacre não foi periciado e nenhum sem-terra foi chamado para testemunhar.

O fazendeiro apontado como mentor intelectual da matança, não foi levado a julgamento. E o tenente-coronel José Ventura Pereira, comandante do massacre, foi inocentado. Dos 20 policiais indiciados, somente 3 foram condenados: Aírton Ramos de Moraes, Daniel da Silva Furtado e Vitório Regis Mena Mendes. Espantosamente, Claudemir Gilberto Ramos e Cícero Pereira Leite Neto, dois líderes do acampamento sem-terra, passaram da condição de vítimas ao status de réus e foram condenados por homicídio. Tarcísio Leite de Matos, o promotor que atuou no caso, exaltou a conduta dos policiais que participaram da chacina e defendeu abertamente o extermínio dos sem-terra, afirmando que “ou o Brasil acaba com os sem-terra ou os sem-terra acabam com o Brasil”.

A brutalidade do Massacre de Corumbiara, a injustiça e o descaso do poder público convenceram parte dos sem-terra sobre a necessidade de criar organizações camponesas mais combativas, aptas a liderarem a luta dos trabalhadores do campo sob uma perspectiva radical e revolucionária. Como frutos desse processo, foram fundados o Movimento Camponês Corumbiara (MCC) e, posteriormente, a Liga dos Camponeses Pobres (LCP).

O massacre levou o governo brasileiro e o estado de Rondônia a serem denunciados junto à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) por violações à vida. A organização recomendou o pagamento de indenização às vítimas do massacre — o que jamais foi feito. Um processo requisitando a indenização foi aberto em 2014, mas foi arquivado sob a justificativa de que os crimes já estavam prescritos. A Fazenda Santa Elina, cenário do massacre, foi desapropriada em 2010, ainda no governo Lula, e teve seus lotes divididos entre as famílias dos assentamentos Água Viva e Maranatá. Fonte: Opera Mundi


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