Em um fatídico dia de 2019, Rondônia viu suas estruturas republicanas tremerem. Não por abalos sísmicos, mas pela onda de choque provocada pelo vazamento de um áudio explosivo. Nele, a voz atribuída ao delegado da Polícia Civil Júlio César de Souza Ferreira, então figura de proa da Draco II e um dos maestros da Operação Pau Oco, soava como um trovão em céu azul, revelando os bastidores sombrios de uma investigação que prometia abalar o estado.
Na gravação, o delegado não mede palavras ao confidenciar a seus comandados a existência de “um grave erro” – um equívoco de proporções sísmicas nos procedimentos investigativos. Um deslize, admitia ele, com potencial para demolir não apenas a reputada delegacia especializada, mas toda a Operação Pau Oco, jogando por terra anos de trabalho e reputações.
O epicentro desse terremoto processual, segundo a mesma confissão, tinha nome e sobrenome: o engenheiro florestal Flávio Tiellet, um assessor próximo ao ex-governador Daniel Pereira. E aqui reside o nó górdio da questão: Tiellet, de acordo com o relato do delegado, teria sido indevidamente arrastado para o centro do furacão investigativo. A manobra, ao que tudo indica, teria um objetivo claro: costurar a fórceps a narrativa de organização criminosa, um artifício jurídico que permitiria ampliar o escopo da apuração e, quem sabe, alcançar peixes maiores.
Essa suposta “engenharia” investigativa, ainda conforme o áudio, teria sido suficiente para ludibriar o magistrado responsável pelo caso, levando-o a decretar a prisão de Tiellet já na primeira fase da Pau Oco. Uma operação que, nos seus desdobramentos futuros, não escondia sua ambição de chegar ao próprio Daniel Pereira. O script parecia desenhado para um desfecho de alto impacto.
O dever de ofício, no entanto, clamava por outra atitude. Ciente da gravidade do que chamou de “erro”, o delegado Ferreira deveria ter batido às portas do gabinete do desembargador Oudivanil Marins, então relator do inquérito e hoje aposentado, para expor a situação. Uma obrigação inadiável, um imperativo moral e legal, sobretudo porque esse “erro” havia resultado no encarceramento de um indivíduo sob suspeitas agora questionadas na sua origem. Mas o alerta não veio.
O tempo, senhor da razão e das revelações, seguiu seu curso. A denúncia do Ministério Público foi devidamente protocolada, e o vasto material probatório – incluindo as gravações telefônicas obtidas sob o manto de medidas cautelares – foi depositado na mesa da Primeira Vara Criminal de Porto Velho, onde a ação penal ganhou corpo.
E foi justamente no coração desses autos que a fraude, antes apenas um fantasma sussurrado em gravações clandestinas, parece ter se materializado em tinta e papel. O foco recai sobre uma conversa telefônica específica, interceptada com todas as bênçãos judiciais, entre os empresários Dario Lopes e Rafael Martins, sócios na BDX Logística, empresa que à época operava o porto público da capital rondoniense. No diálogo original, os dois tratavam de negócios, em conversas aparentemente rotineiras, sem indícios claros de qualquer atividade delituosa.
Contudo, no relatório de análise produzido pelos agentes da Draco II, a realidade teria sido submetida a uma cirurgia plástica textual. Rafael Martins, o efetivo dono da linha telefônica interceptada e um dos participantes do diálogo, teria sido suprimido do relatório. Em seu lugar, como num truque de ilusionismo digital, emergiu o nome de Flávio Tiellet. Com essa troca, um bate-papo empresarial corriqueiro foi transfigurado em suposta prova cabal de um esquema de corrupção ativa e passiva.
Essa versão reeditada da conversa não se limitou a ilustrar as páginas do relatório policial. Ela teria sido a peça de resistência na representação por prisões e mandados de busca e apreensão submetida ao desembargador Marins. O magistrado, fiando-se na presunção de veracidade dos atos investigativos, chancelou as medidas, permitindo assim a prisão do empresário Dario Lopes e, crucialmente, de Flávio Tiellet – o homem que, segundo as denúncias atuais, fora artificialmente inserido no olho do furacão.
Na sequência, o Ministério Público, utilizando-se dessa mesma base probatória supostamente viciada, teria formalizado a denúncia contra Dario e Flávio pelos crimes de corrupção.
O que causa maior perplexidade, no entanto, é o que se seguiu – ou melhor, o que não se seguiu. Mesmo após a divulgação do áudio do delegado Ferreira e a subsequente exposição da alegada fraude documental nos autos, o Ministério Público, guardião da lei e da ordem jurídica, não teria promovido qualquer correção de rumo. Os réus, Dario Lopes e Flávio Tiellet, permanecem até hoje no banco dos réus, respondendo por crimes que, se a manipulação for cabalmente comprovada, jamais ocorreram.
Para os que ainda cogitam a hipótese de um simples "erro material", um equívoco involuntário na transcrição, peritos da área de informática oferecem um banho de água fria. A substituição de nomes de interlocutores em um diálogo interceptado, afirmam categoricamente, não é obra do acaso ou de um descuido digital. Tal alteração só poderia ocorrer mediante edição deliberada do texto – uma tarefa simples, realizável com ferramentas básicas como o "localizar e substituir" de um editor de textos comum. Uma manobra tão singela em sua execução quanto devastadora em suas consequências.
A revelação dessa suposta fraude, confessada por quem deveria zelar pela integridade da investigação, lança uma sombra densa sobre a Operação Pau Oco e acende luzes de alerta sobre os mecanismos de controle e fiscalização dos atos investigativos. A questão que paira no ar, e que certamente ecoará nos tribunais superiores, é se a Justiça, uma vez confrontada com a anatomia de uma fraude, terá a coragem de extirpar o tumor, ainda que isso implique rever condenações e, quem sabe, reescrever capítulos inteiros de uma das operações mais rumorosas da história recente de Rondônia. O silêncio das instituições, neste momento, é mais eloquente que qualquer áudio vazado.
Interceptando Wilson Dias
É proveitoso citar mais um vazamento, que confirma a autenticidade do material e reforça a certeza de que o governador Daniel Pereira foi secretamente investigado em 2018.
Contexto: em 28-10-2018, o agente Wilson Lourenço avisa ao delegado Júlio César de que os assessores do governador Daniel Pereira estão comprando votos. Tal fato não se confirmou, mas pontualmente, naquele dia, os policiais acreditavam neste engano.
Daí temos os três áudios que seguem, onde interceptações telefônicas do Guardião são novamente mencionadas.
Arquivo | Data | Dono da voz | Duração |
PTT-20181028-WA0046 | 28-10-2018 | WILSON LOURENÇO | 01:41 |
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Agora é o seguinte, ele vive junto com o governador e ele influencia nas coisas.
Tem um áudio dele lá, desse último período agora, que foi até o dia 19, um áudio do dia, acho que do dia 4, do dia 5, dia 5 aliás, que ele liga pra uma mulher, a princípio ele exige que a mulher... Aparecida, é o nome da mulher, ela mora num bairro lá que tem mais ou menos 1.500 famílias, e aí o Wilson Dias intermediou junto com o governo pra poder comprar essa área e ceder pras famílias.
E aí ele exige depois pra mulher e fala, não, mudou de planos agora, não vai ser ele não, vai ser algum nome Júnior, o cara é presidente da Câmara, parece de vereadores lá de Porto Velho, ou é vice-presidente, e aí ele arrocha a mulher mesmo, cara, falou, é o seguinte, existem 1.500 famílias, eu quero no mínimo 1.000 votos pra ele aí, 1.000 votos pro Léo Moraes, quem determinou isso aqui FOI O GOVERNADOR. [...] |
Acreditando que o governador Daniel Pereira está comprando votos através de seus assessores, o delegado Júlio César responde:
Arquivo | Data | Dono da voz | Duração |
PTT-20181028-WA0047 | 28-10-2018 | JÚLIO CESAR | 00:14 |
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Então peraí, peraí, isso aí é genial cara, isso aí ele tá pedindo voto, comprando voto, caralho meu irmão, isso aí é brilhante cara, degrava esse áudio. |
Em seguida, Lourenço fornece mais detalhes:
Arquivo | Data | Dono da voz | Duração |
PTT-20181028-WA0048 | 28-10-2018 | WILSON LOURENÇO | 01:18 |
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Exatamente. Ele tá usando o cargo pra comprar voto através desse dinheiro aí do... Rapaz, acho que é CRO, tanto pra área rural quanto pra área urbana. É Certificado de Reconhecimento de... de Ocupação. Certificado de Reconhecimento de Ocupação. E aí ele emite um documento e a pessoa passa a ser proprietária. Então tem esse bairro lá e precisava disso. Ele foi no GOVERNADOR, conseguiu em tese o recurso, mas aí o GOVERNADOR falou pra ele: agora a gente precisa ajudar os nossos amigos que estão concorrendo ao pleito eleitoral. Fica muito nítido, velho! É um áudio lá de 7 minutos e alguma coisa. Eu vou fazer o seguinte, doutor. Eu tô acordando agora, porque eu tô aqui até as 3 da manhã. E aí eu vou ter que fazer almoço, porque minha esposa tá como mesário. E eu tô com o meu sobrinho aqui em casa, visitando a gente. Mas aí à tarde eu vou lá degravar esse áudio sim, com certeza. E assim que eu degravar eu te envio, beleza? Mas é isso aí mesmo. Foi um esquema deles de compra de voto com dinheiro público. Em tese não entregaram dinheiro em espécie, mas articularam pra poder entregar a posse dos terrenos. |
A data: 28 de outubro de 2018. Daniel Pereira era o Governador do Estado de Rondônia. O correto seria o delegado interromper tudo e enviar o conteúdo para o STJ, pois o foro sobe pela prerrogativa de função. Nunca aconteceu. Tal usurpação de jurisdição contamina todo o processo e traz nulidade absoluta.
A defesa, no intuito de confirmar a veracidade dos áudios vazados, procurou no sistema Reader do Guardião se tal conversa realmente se deu e se os pormenores fornecidos por Wilson Lourenço de novo se equivalem.
Características da interceptação procurada: no dia 4 ou 5 de outubro, duração de 7 minutos e alguma coisa, entre Wilson Dias e Aparecida, sobre terrenos. A defesa também logrou sucesso em encontrar, onde todos os detalhes foram confirmados, incluindo a data, a duração, os participantes e o assunto conversado, corroborando ainda mais a autenticidade do material.
Interceptação 4 — Wilson Dias x Maria Aparecida
Imagem: recorte do printscreen do sistema Reader do Guardião, disponibilizado em março pelo MPE. Disco 5, HNI 16, Wilson Dias.
Existem dezenas de outros. É convicção da defesa que os áudios vazados pela imprensa são autênticos e esta é uma demonstração preliminar, mas que torna evidente a necessidade de peritagem, pois nesta conduta da Draco II aparenta existir vício que gera nulidade absoluta.
Ademais, as conversas dos agentes se enquadram de maneira coesa no contexto mais amplo da investigação. Essa coerência contextual oferece uma camada adicional de validação.
A defesa ainda não contratou uma análise pericial. Entretanto, é sabido que os áudios foram vazados em outubro de 2019. A única forma de alguém saber tantos detalhes específicos aponta para a impossibilidade lógica e técnica de que sejam mensagens fabricadas. A improbabilidade de tal ato reforça a autenticidade dos áudios.
Fonte: Hoje Amazônia. - https://www.hojeamazonia.com.br/noticia/fraude-revelada-por-delegado-da-operacao-pau-oco-e-encontrada