Uma rua de cascalho, tomada pelo mato, no bairro Baixa da União, parte central de Porto Velho (RO), dá acesso à casa de Gabriel Felipe Silva de Melo, de 11 anos. A moradia, feita em madeira e que fica em frente a um enorme bueiro onde o esgoto corre a céu aberto, foi construída sobre palafitas com cerca de 2,5 metros de altura para proteger a casa contra inundações.
Mas nem isso impediu que, em 2014, durante a maior cheia da história da cidade, a água invadisse o imóvel. A família de Gabriel só não perdeu tudo porque retirou parte da mobília antes. Gabriel não se recorda, porque estava na barriga da mãe, mas seus pais tiveram que passar quatro meses alojados em um abrigo comunitário. No dia 30 de março daquele ano, o nível do rio Madeira atingiu 19,69 metros.
Onze anos depois, o problema persiste. Embora as águas não tenham mais atingido o nível histórico de 2014, tem sido comum, nos últimos anos, ver a rua do Gabriel se unir às águas do rio Madeira e também virar rio durante as cheias, comuns no inverno amazônico, quando chove com mais frequência entre os meses de fevereiro até maio. Neste ano, a água voltou a subir, alcançando os degraus da escada da casa dele. Neste período, só era possível sair de casa em uma canoa simples, sem motor e à base de remos, conta a mãe de Gabriel, Jeniffer Bezerra de Melo Silva, de 29 anos, cozinheira e mãe de cinco filhos.
Um quarto da população (24,9%) que vive em áreas de risco a eventos hidrogeológicos – como inundação, alagamentos, deslizamentos e erosão — na Amazônia têm menos de 14 anos, segundo uma análise exclusiva realizada pela InfoAmazonia a partir de informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do mapeamento do Serviço Geológico do Brasil (SGB), na Amazônia, sobre as áreas de risco a eventos climáticos. A análise também mostra que, na Amazônia, os mais vulneráveis aos eventos climáticos são jovens: 51% têm até 30 anos.
Esta é a sexta reportagem da série Vulneráveis do Clima, uma parceria da InfoAmazonia com o Voz da Terra (RO), que mapeou quem são os mais expostos a desastres climáticos na região amazônica.
Neste ano, mais de 8 mil pessoas que vivem em cerca de 36 comunidades ribeirinhas de Porto Velho foram afetadas pelas recentes cheias do rio Madeira. Na cidade, famílias relatam que o desastre afastou crianças das escolas e as deixou socialmente mais isoladas. Sem poder brincar no bairro, aumentaram o uso de celular e a exposição a telas e jogos digitais. Os impactos, contam as mães, também são socioemocionais.
As crianças são apontadas pelo Unicef, fundo da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável por defender e proteger os direitos das crianças e adolescentes em todo o mundo, como um dos grupos mais vulneráveis à crise climática pelas consequências dos desastres no desenvolvimento infantil, dependência em cuidados básicos e maior exposição a riscos ambientais.
Mapa das áreas de risco hidrogeológico.
A água assusta e famílias optam pelo isolamento social
Gabriel Felipe, de 11 anos, tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e sente dificuldade em lidar com mudanças na rotina, em razão da alteração no desenvolvimento neurológico. As travessias de canoa para ir à escola, necessárias quando o rio transborda, o deixaram em pânico. “Não foi muito incrível pra mim. Foi muito assustador. Eu estava com medo da canoa virar”, relata. Ele se lembra de como a embarcação “tremia” e o deixava aflito. Alguns dias, optou por não ir às aulas.
Sem o quintal seco para recreação de futebol e queimada, as brincadeiras com amigos deram lugar ao celular e aos vídeos no YouTube. A irmã Gabrielly Sofia, de 7 anos, improvisou: “Eu brinquei um pouco no rio jogando pedra e pegando peixe”. A mãe, atenta, percebeu os impactos emocionais nas crianças. “Não podiam brincar, né? Não podiam sair do lugar onde vive com a família. Tinham que ficar presos o tempo todo dentro da residência. Isso estava deixando eles estressados. E eu também”, diz Jennifer.
O chão de terra batida onde eles moram, na parte central de Porto Velho, ainda tem rejeitos de lama misturados com lixo arrastado pela correnteza do inverno amazônico. Para a família de Gabriel, foram cerca de 60 dias difíceis, com a água na porta da moradia. A cheia trouxe mais do que desconforto: trouxe medo.
“Tem uns anos que não alaga aqui. Agora, neste ano alagou bastante. Prejudicou a gente e eu tava até gestante. Já para ganhar neném. Aí [tive] medo, né, de me dar dor e não poder sair", afirma Jennifer. Ela diz que também tinha medo de animais entrarem em casa, especialmente à noite, nos dias em que o marido saía para trabalhar como vigia, e ela ficava sozinha com as crianças. “Eu ficava morrendo de medo. Aqui tem cobra, tem jacaré, que é perigoso. No dia do parto, eu senti o líquido da bolsa estourando, aí um rapaz teve que me atravessar ali de canoa, aí de lá meu pai me levou de moto para a maternidade”, conta.
Jennifer é cozinheira e, nos dias em que o marido está trabalhando fora, cabe a ela, mesmo no período pós parto, sair de canoa para comprar alimentos para as crianças. Ela conta que muitas vezes, por medo, não se arriscou a sair do lugar onde mora de canoa. “Aí, [com] a dificuldade para comprar as coisas para comer, [porque] a gente não podia sair para comprar, tinha que ficar aqui com fome. As crianças com dificuldade pra ir para a escola… Às vezes não iam, que é muito perigoso canoa”, afirma.
Um estudo do Unicef mostra que, em 2024, 1,17 milhão de crianças tiveram os estudos interrompidos por eventos climáticos no Brasil. Segundo o levantamento, inundações, tempestades e outros perigos climáticos podem dificultar o trajeto para a escola, levar a condições de aprendizagem inseguras e afetar a concentração, a memória e a saúde física e mental dos alunos.
O relatório diz ainda que as escolas seguem fora dos planos de resposta a emergências e das políticas climáticas, o que agrava a vulnerabilidade de crianças em regiões já marcadas por pobreza e falta de infraestrutura. No documento, a organização pede que os governos incluam a educação nas estratégias de adaptação ao clima, garantindo estruturas seguras, rotinas de emergência e formas de manter o ensino durante crises, já que proteger a escola é essencial para o futuro das novas gerações.
Jennifer conta que, durante as cheias deste ano em Porto Velho, seus filhos também sofreram com a falta de estrutura e insegurança alimentar. “Aqui não apareceu ninguém do estado, nem prefeitura para ajudar a gente com nada, nem com uma cesta básica que a gente precisava. Não apareceu ninguém", afirma.
Ela explica que a moradia foi construída considerando o risco do lugar, erguida a 2,5 metros de altura do solo para evitar alagamentos. Mesmo assim, a família dela não se sente segura com as chuvas intensas. O filho Gabriel diz que sonha com um lugar melhor. “Queria que o governo tirasse aquele bueiro, arrumasse um pouco aqui, tirasse o lixo, botasse um cascalho, um monte de cadeira e um parque. Seria bem legal”, afirma.
A prefeitura de Porto Velho decretou estado de alerta de emergência e pediu recursos do governo federal para obras que possam solucionar o problema dos alagamentos, além de fornecer auxílio emergencial e assistência à população, distribuindo água potável. O governo estadual, por sua vez, anunciou o pagamento de auxílio financeiro de R$ 3 mil para famílias vulneráveis.
A residência da família de Gabriel não tem acesso a serviços e infraestrutura urbana fundamentais, como por exemplo, rede de esgoto. “A fossa é um buraco na parte de trás”, diz Jennifer. E mesmo com acesso a rede de água encanada da Companhia de Águas e Esgoto de Rondônia (CAERD), a qualidade do serviço é precária: “Vem suja, suja, suja essa água. Muito suja. A gente tem que colocar um pano na torneira”.
A CAERD diz que realiza manutenção da rede de água no bairro Baixa da União, mas explica que as tubulações são antigas, “o que tem ocasionado rompimentos frequentes e impactado diretamente na qualidade do fornecimento”. Em nota enviada ao Voz da Terra, a companhia declara que “reconhece os transtornos e reforça que já vem executando, de forma gradual e programada, a substituição das adutoras de ferro por novas estruturas mais modernas e resistentes, o que garantirá maior regularidade no abastecimento e melhoria da qualidade da água entregue à população”.
Além da má qualidade da água, moradores do bairro enfrentam a falta de acesso a saneamento básico. Segundo a análise da InfoAmazonia com dados do SGB e do IBGE, aproximadamente 47% dos domicílios em áreas de risco em Rondônia despejam o esgoto em fossas rudimentares ou buracos. Sem acesso a serviços e infraestrutura urbana, a população diz que a situação também reflete na saúde das crianças e suas famílias.
“Sempre a gente adoece. Diarreia e coceira, é o que mais dá. Mas é o lugar que a gente tem. O lugar nosso é esse aqui”, conta Maria do Livramento, que mora no bairro Nacional, distante mais de seis quilômetros do bairro Baixa da União, onde vive Jennifer e Gabriel, e diz enfrentar problemas semelhantes com alagamentos, falta de estrutura e escassez de água. Se na cheia ela precisa consumir água suja, na estiagem o poço seca, e ela precisa pedir água na vizinhança.
Inundações afastam crianças da escola
O bairro Nacional, em Porto Velho, é uma das 20 maiores favelas do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde vivem mais de 7 mil pessoas. Foi lá que Maria do Livramento criou filhos e netos, em uma região de baixada e próxima a um igarapé, vulnerável à alagação quando a cheia é mais intensa. Várias gerações da família dela enfrentaram inundações e, quando crianças, deixaram de frequentar a escola por conta das alterações climáticas.
Na grande cheia deste ano, a água invadiu mais uma vez a casa de Maria, construída com madeira reaproveitada já desgastada por inundações anteriores e chão de tijolos. Ela conta que não deu tempo de salvar quase nada. “Agora eu tô sem nada, sem geladeira, sem fogão. O carro que levou a gente foi nas pressas, tirou a gente também, levou só o que dava de levar. Aí o que não deu de levar ficou aí e estragou. Foi só para jogar fora quando eu voltei”, conta Maria.
A situação da mãe dela, Isabel Leandro, foi ainda pior: a casa onde vivia, na mesma região, foi destruída pela água e virou um amontoado de escombros de madeira. Diante da situação, toda a família precisou passar dois meses vivendo na casa de amigos, aguardando a casa secar para voltar. Neste período, o pequeno Pedro Emanuel Oliveira da Silva, de cinco anos, que mora com a avó Maria do Livramento, também precisou deixar de ir à escola.
Isso porque a família conseguiu abrigo no bairro São Sebastião, a 7 km de distância da escola em que Pedro estava matriculado. Sem acesso a transporte, ficou difícil para a família garantir a frequência do menino. “A escola me ligando, cobrando. Mas como eu ia trazer o menino de lá até aqui, sem transporte?”, conta Maria. O afastamento da escola que neste ano atingiu o neto é uma realidade já vivida pelos filhos dela. “Em 2014, meus filhos ficaram parados [sem frequentar a escola]. Agora é o neto. Ele só volta pra escola quando voltamos pra casa”, diz.
Tão logo as águas começaram a baixar, em meados de abril, a família de Pedro Emanuel voltou para casa. Isabel, que teve a casa completamente destruída, agora mora com eles na casa de Maria. Pedro comemora uma nova fase. “Estou feliz porque a gente saiu daquela região. Quero continuar na escola e não parar mais”, afirma.
De volta à casa, Maria conseguiu, com muito esforço, levar Pedro de volta à escola. “Os amiguinhos todos dizendo: Pedro, que bom que você voltou”, celebrou ela, em uma conversa um dia depois da visita da reportagem. Manter a frequência, porém, não vai ser fácil, já que Pedro estuda à tarde, em uma escola distante dois quilômetros de sua casa, e Maria perdeu o único meio de transporte. “A bicicleta está quebrada, não tenho dinheiro pra isso agora”, explica.
A casa também ainda não está estruturada, depois da perda de utensílios e móveis durante a cheia. Maria conta que eles retornaram com pouca coisa, apenas o que cabia no bagageiro de um carro de aplicativo. O fogão, que recebeu para poder cozinhar durante o período em que a família esteve abrigada com amigos, ficou. “Estou cozinhando na lenha. Eu não trouxe fogão, não trouxe nada, porque foi doado, eu não sei se é doado só para quando eu tava lá ou se era para trazer para minha casa. E tá difícil, né? É superar”, afirma.
Maria diz que vivenciar essas situações afetam a saúde mental das crianças e da família inteira. “É cansativo porque a gente perde as coisas e não consegue… O que consegue já sabe que vai perder de novo. Então, é muito cansativo", diz. Sem condições de comprar uma casa longe dos riscos, ela diz que a saída é economizar e tentar aterrar o terreno, para não ter que sair de novo, em uma próxima cheia. “Tem dias que bate o desespero, a tristeza, bate o desânimo, a vontade de chorar. Mas eu vou para onde? Entendeu? Não tem como eu ir para outro lugar. A situação fica pior quando você sabe que tem uma criança dependente. Então, é responsabilidade minha. É desesperador, mas eu não posso cair não. Tem que continuar”, declara.
Atualmente, a única renda da família vem da aposentadoria de Isabel, que não consegue prover todas as necessidades, e a família segue morando em um local insalubre, com banheiro precário. “É sacolinha, lixo. Não tem fossa não. Tem esgoto de nada”, relata Maria. Sequer tem água encanada. A água que eles utilizam é de um poço, o líquido é barrento e não serve para beber. “Ainda hoje minha filha disse: mãe, não tá prestando pra beber, mas pra usar, lavar vasilha, fazer comida já dá", conta Isabel, que diz que a família tem problemas de saúde recorrentes como diarreia.
Crianças enfrentam insegurança alimentar
Alheio ao drama familiar, a principal distração do menino Pedro é ir pro campo que fica perto de casa para ver as outras crianças soltando pipa. “Eu não tenho pipa”. O garoto também gosta de se aventurar nas águas trazidas pela enchente. “Aqui é lago, mas eu não tenho medo”, diz. Na sua infância inocente, adorou mudar de moradia por dois meses. Mas também gostou de voltar para casa.
Pedro ignora que as enchentes e inundações aumentam o risco de diversas doenças infecciosas devido à contaminação da água. Desconhece que a casa, depois de alagada, fica suscetível a animais peçonhentos - a avó encontrou uma cobra dentro da pia quando retornou. Também não tem a compreensão de que a família vive em insegurança alimentar. Quando a equipe do Voz da Terra esteve na casa dele, soube que o almoço naquela semana foi apenas feijão e arroz. “Não sobra dinheiro pra mistura”, relata a avó Maria.
As crianças Pedro, Gabrielly e Gabriel vivem a menos de cinco quilômetros da Assembleia Legislativa, da Prefeitura de Porto Velho e do Centro Político e Administrativo do governo de Rondônia. Estão próximos, fisicamente, do poder. Mas, na prática, permanecem distantes de uma política pública que de fato os enxergue. Suas infâncias seguem alagadas pelo distanciamento de projetos do poder público de mitigação e adaptação dos eventos climáticos extremos.
Sobre essa ausência de ações sociais e de assistência para famílias impactadas por tragédias ambientais, o Poder Legislativo diz que atua com o governo em iniciativas de apoio aos cidadãos, aprovando recursos financeiros e leis. Em 2025, os deputados estaduais realizaram uma campanha para coleta de donativos. Arrecadaram cerca de 12 mil litros de água que foram distribuídos para famílias atingidas da região do baixo rio Madeira, área que mais sofreu com as inundações.
Esta reportagem é uma parceria da InfoAmazonia com o Voz da Terra e faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia. Foi produzida na Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com apoio do Instituto Serrapilheira.
Fonte: Voz da Terra.