Morreu na madrugada desta segunda-feira o pianista Nelson Freire, aos 77 anos, no Rio de Janeiro. Segundo a empresária do músico, que não divulgou a causa de sua morte, ele estava em casa, na Joatinga. Há dois anos, Nelson sofreu uma queda no calçadão da Barra da Tijuca e fraturou o úmero do braço direito. Ele foi operado, mas não voltou a tocar depois do acidente e, segundo amigos, passou a sofrer de depressão.
— Nelson queria voltar a tocar, mas ainda estava muito afetado por causa do acidente. E a pandemia da Covid-19 o deixou isolado em casa — conta o diretor da Rádio MEC Thiago Regotto, que esteve com o pianista em março.
Ainda segundo amigos, a pianista argentina Martha Argerich, grande amiga de Nelson, estava no Rio ao seu lado quando da morte. Ela pediu ao pianista Arthur Moreira Lima para substituí-la na banca do Concurso Chopin, em Varsóvia, para poder ficar mais perto dele.
Nascido em Boa Esperança, Minas Gerais, em 1944, Nelson era considerado um dos maiores pianistas do século XX. Descrito como '"tímido", de "caráter discreto", começou a dedilhar no piano aos 3 anos de idade, ao observar a irmã. Por isso, seus pais se mudaram para o Rio quando ele tinha 5, em busca de professoras para o jovem prodígio, que começou a estudar com Nise Obino e Lúcia Branco.
Em 1957, em plenos anos da presidência de Juscelino Kubitschek, foi realizado no Rio de Janeiro um concurso internacional de piano. Nelson Freire, então com 12 anos, foi o mais jovem entre os 47 candidatos. Ele ficou em nono lugar (com uma interpretação do primeiro movimento do "Concerto Imperador" de Beethoven), mas revelou-se uma sensação, e acabou ganhou uma bolsa do governo JK para estudar em Viena, na Áustria.
A partir daí, Freire fez carreira na Europa, conquistando, aos 19, o primeiro lugar no Concurso Internacional Vianna da Motta, em Lisboa. Cinco anos depois, estreou com a Orquestra Filarmônica de Nova York. Chegou a ganhar da revista "Time" o título de “um dos maiores pianistas desta ou de qualquer outra geração”. Trabalhou em todas as grandes cidades da Europa e Estados Unidos, com os maiores regentes do século XX.
— Ainda tenho muito a conquistar. Progredir. Se um artista achar que conquistou tudo, parou — disse ele, em entrevista ao GLOBO, em 2014.
Como um jovem estudante na Europa, Nelson Freire conheceu sua alma gêmea e grande amiga, Martha Argerich, com quem compartilhou o teclado em muitas ocasiões. Foi de mãos vazias, sem ter vencido concursos, que Nelson Freire voltou ao Brasil em 1962. Um pouco taciturno e deprimido, cansado do piano, uma partitura o arrancava da tristeza: as rapsódias de Brahms, oferecidas por um amigo. Ao tocá-las, o jovem pianista redescobriu o gosto pelo seu instrumento.
Ao longo da carreira, Nelson Freire se apresentou com algumas das maiores orquestras do mundo, como as Filarmônicas de Berlim, Munique e Rotterdam, a London Symphony Orchestra e a Royal Philharmonic Orchestra. E trabalhou com os mais prestigiados regentes, como Pierre Boulez, Kurt Masur, André Previn, Rudolf Kempe (com quem realizou diversas turnês pelos Estados Unidos e Alemanha com a Royal Philharmonic Orchestra) e Isaac Karabtchevsky.
O pianista gravou diversos álbuns, sendo o último, "Encores", lançado em outubro de 2019 pela Decca. Só por essa gravadora, são 22 álbuns, desde 1983, com gravações de Chopin, Schumann, Brahms e Beethoven.
— Não ouço nem durante nem depois meus discos. Já tem uns cinco anos isso, foi acontecendo aos poucos. Porque se ouço, fico querendo mudar — disse o pianista ao GLOBO em 2001.
Em 2003, o músico foi tema de um documentário feito pelo cineasta João Moreira Salles. "Nelson Freire" venceu o prêmio de melhor documentário do Grande Cinema Brasil daquele ano e contou com a participação da amiga Martha Argerich. Em 2016, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Admiradores, amigos e colegas do pianista lamentaram a sua morte. Diretor da Sala Cecilia Meireles, João Guilherme Ripper disse: "Perdemos nosso grande pianista, um artista generoso e genial! Jamais esquecerei um recital no Teatro Châtelet em Paris, em que Nelson tocou um programa dedicado a Chopin. Ovacionado, retornou nove vezes ao palco para tocar de bis toda 'A prole do bebê', de Villa-Lobos. Com Nelson, desaparece mais um pedaço daquele Brasil que encantou o mundo."
No Instagram, o produtor, jornalista, compositor e colunista de O GLOBO Nelson Motta escreveu: "Menino prodígio de raro talento, não teve infância nem juventude nem tempo para nada com sua vida inteiramente dedicada ao piano - e à criação de beleza e arte para o mundo à custa de enorme sacrifício pessoal com horas e horas de estudo diário que não terminam nunca. Amo especialmente seus discos de Debussy e de Villa Lobos e autores brasileiros. Obrigadissimo, xará. Vai em paz."
Para o maestro Fabio Mechetti, Diretor Artístico e Regente Titular da Filarmônica de Minas Gerais, a musicalidade de Nelson Freire "o distinguiu no cenário da música clássica internacional, celebrado que foi em todo o mundo pela hipnotizante maneira com que se utilizava de seu melhor amigo, o piano, para expressar os mais profundos sentimentos, fossem eles de alegria, como nas suas legendárias interpretações de Ravel ou nas inúmeras obras de Villa-Lobos, que tanto ajudou a popularizar, quanto na mágica intimidade sonora que conquistava nas suas leituras de Chopin, Schumann e Beethoven." Fonte: G1