Percorrer algumas áreas agrícolas da Amazônia pode causar uma certa surpresa ao visitante. No mosaico de pastos e roças, que são mais comuns na região, a paisagem pode se tornar mais verde, densa e variada. Neste caso, visualizam-se árvores frondosas, como a castanheira, compartilhando espaço com cultivos, tais quais os do açaí, andiroba, copaíba, cupuaçu, cacau e banana, e ainda culturas anuais, como o milho e a mandioca. Essas paisagens compõem as chamadas Agroflorestas, Sistemas Agroflorestais (SAFs) ou simplesmente Consórcios, como as comunidades locais as denominam.
Elas não representam algo novo, pelo contrário. As comunidades locais da Amazônia vêm praticando sistemas integrados e diversificados ao longo dos séculos, desde o período pré-colombiano, mesmo antes da domesticação de espécies nativas para agricultura. Entretanto, a novidade das últimas décadas é o esforço empreendido por instituições de pesquisa, como Embrapa, Universidades, Organizações Não-Governamentais, junto a segmentos da produção familiar e comunidades tradicionais para expandir a implantação destes sistemas em substituição aos monocultivos de baixa produtividade. Basicamente, busca-se ampliar o potencial destes espaços de produção através da diversificação das espécies cultivadas em substituição aos sistemas de baixa produtividade e alta degradação ambiental que predominam na região.
A urgência é grande frente às múltiplas crises enfrentadas na Amazônia – climática, hídrica, alimentar e de direitos de Povos Indígenas e Comunidades Locais (PICL) – e que transbordam para outras regiões do Brasil. A transição para formas mais sustentáveis de produção agropecuária – i.e., que conservem o meio natural, minimizem as mudanças climáticas, reduzam impactos sobre a biodiversidade e beneficiem os PICLs – deve estar no centro das preocupações brasileiras. As agroflorestas, se bem planejadas e manejadas, pontuam em todos estes aspectos: aumentam biodiversidade, estoques de carbono e têm grande potencial para restaurar áreas agrícolas degradadas. Portanto, motivos não faltam para realizar o máximo desse potencial.
São ainda relativamente poucos os estudos sobre o potencial socioeconômico das agroflorestas. Ainda assim, as avaliações existentes vêm mostrando, de forma muito consistente, que os SAFs são altamente viáveis e que seus indicadores socioeconômicos são muito positivos. Abordamos alguns deles a seguir, a título de exemplo.
No município de Tomé-Açu, Pará, agricultores ligados à Cooperativa CAMTA (Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu) desenvolvem SAFs nos quais áreas de 10 a 20 hectares (ha) produzem rendimentos comparáveis à pecuária bovina em pastagens de 400 a 1.200 ha. Esses SAFs geram mais empregos por unidade de área do que a pecuária extensiva à pasto. Além disso, tem se mostrado muito mais rentáveis do que a agricultura de corte-e-queima para comunidades de produtores familiares em áreas no médio Tapajós, no Pará.
Em Rondônia, um sistema agroflorestal do Projeto RECA (Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado), os pesquisadores também mostraram resultados igualmente promissores. O RECA, juntamente com a CAMTA, constituem exemplos bem-sucedidos de agroflorestas na Amazônia. Em um dos SAFs estabelecidos no RECA – composto por copaíba, andiroba, cupuaçu, pupunha e bananeira – os empreendedores tiveram retorno financeiro desde o 2º ano de implantação, a partir da renda da comercialização da banana. Esse resultado foi uma novidade, uma vez que SAFs com espécies perenes geralmente demandam de 8 a 12 anos para obtenção de retorno econômico positivo aos investimentos. Neste caso, o valor presente líquido, calculado para 20 anos, representou cerca de R$ 41.300,00, com a renda anual de cerca de R$ 4.200 por hectare.
Mas, como esses benefícios dos SAFs se comparam a outros sistemas agropecuários em curso na região? Usamos aqui um estudo da Rede Amazônia Sustentável (RAS), que comparou a variação da renda entre propriedades que adotam diferentes atividades agrícolas, em 2011, em Santarém e Paragominas, no Pará. A renda anual média por hectare em propriedades com cultivos perenes mais especializados, como frutas e pimenta-do-reino, foi cerca de quatro vezes superior à produção de soja e cerca de nove vezes – isso mesmo, NOVE vezes – superior à renda das propriedades com pecuária na região do estudo.
Apesar das vantagens dos sistemas agroflorestais, existem diversos obstáculos a sua adoção em larga escala pelos produtores familiares, que respondem por 83% dos 919.057 estabelecimentos na Amazônia Legal. Entre esses, se destacam os elevados custos de implementação inicial dos SAFs, as dificuldades de acesso e inadequação das linhas de crédito rural, dos serviços de assistência técnica e extensão rural e de acesso aos mercados para a comercialização desses produtos.
Por outro lado, há um momentum crescente em direção a uma nova bioeconomia da floresta e seus ecossistemas na Amazônia que preconiza todo um ambiente de inovação e integração da ciência com os conhecimentos tradicionais. Na visão dos amazônidas, esta inovadora Bioeconomia envolve, por exemplo, novos bioprodutos com maior valor agregado, novas formas de produção ou de cooperação social, ao mesmo tempo em que conserva os ecossistemas e o conhecimento tradicional. É certo que tal produção inovadora amplia extraordinariamente as oportunidades e o potencial das agroflorestas de contribuir para um processo de desenvolvimento inclusivo, com maior equidade e que concilia bem-estar humano com a conservação da biodiversidade.
Entretanto, não sejamos ingênuos: a realização desse potencial só será possível com mudanças profundas da realidade do interior amazônico. São essenciais as políticas públicas e grandes investimentos estruturais em pilares fundamentais: educação, saúde, pesquisa científica aplicada, assistência técnica contínua e de qualidade, ampliação do acesso ao crédito, prioridade para a implementação de uma infraestrutura sustentável dos modais de transporte, além da ampliação do acesso à comunicação rural.
Esses avanços fundamentais serão facilitados pela cooperação entre países amazônicos e não-amazônicos, bem como entre instituições de diversas origens e setores. A interrupção dos atuais incentivos para atividades predatórias é um ponto de partida fundamental para a emergência deste ambiente de inovação. As mudanças são urgentes e precisamos implementá-las em tempo recorde.
Joice Ferreira é Ecóloga, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, co-fundadora da Rede Amazônia Sustentável (RAS). Na Embrapa, é membro do comitê gestor do Portfólio em Serviços Ambientais. É professora da pós-graduação na Universidade Federal do Pará. Sua pesquisa foca na interface entre os usos da terra e a conservação de Serviços Ambientais e Biodiversidade na região Amazônica. Joice é autora dos capítulos 27, 28, 29 e 30 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021 produzido pelo Painel Científico para a Amazônia.
Judson F. Valentim é agrônomo, pesquisador da Embrapa Acre, presidente do Comitê Gestor do Portfólio Amazônia. Sua pesquisa tem foco em inovações e no suporte à formulação de políticas públicas para intensificação sustentável dos sistemas de produção agropecuários na Amazônia. Judson é autor dos capítulos 11, 27, 28, e 29 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021 produzido pelo Painel Científico para a Amazônia.
Carlos Eduardo Young é Economista, Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua na área de instrumentos econômicos para a política ambiental, valoração de serviços ecossistêmicos, macroeconomia do meio ambiente e contabilidade verde. Carlos é autor do capítulo 30 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021 produzido pelo Painel Científico para a Amazônia.
O Painel Científico para a Amazônia é uma iniciativa inédita convocada pela Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (SDSN), lançado em 2019 e inspirado no Pacto Leticia pela Amazônia. O PCA é composto por mais de 200 cientistas e pesquisadores proeminentes dos oito países amazônicos e Guiana Francesa, além de parceiros globais que apresentaram em 2021 um relatório inédito com uma abordagem abrangente, objetiva, transparente, sistemática e rigorosa do estado dos diversos ecossistemas da Amazônia e papel crítico dos Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPLCs), pressões atuais e suas implicações para o bem-estar das populações e conservação dos ecossistemas da região e de outras partes do mundo, bem como oportunidades e opções de políticas relevantes para a conservação e desenvolvimento sustentável. Fonte: Agência Bori