Quem vê a fotógrafa Milene Nunes, de 38 anos de idade, registrando partos de bebês não imagina como foi a jornada para descobrir sua perda auditiva e aprender a lidar com a deficiência. Hoje, ela não se sente intimidada com algum comentário malicioso que possa surgir, mas na infância e na adolescência foi diferente.
Ela tem perda auditiva genética, mas só teve o diagnóstico aos 23 anos. “Quando eu era criança e jovem as pessoas falavam: 'Ah você é surda!?' Mas, para mim era brincadeira de jovem mesmo. E como ninguém da minha família ainda tinha comentado sobre a perda auditiva, eu achava que o mundo era daquele jeito, que eu não conseguia entender mesmo o que as pessoas falavam, eu achava que era normal aquilo e as piadinhas que as pessoas contavam eu raramente entendia.” Nesta terça-feira (21), é lembrado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência.
Milene conta sobre sua audição. “Na fase da juventude, quando a gente ouve rock and roll, eu não gostava, porque quem tem perda auditiva tem uma sensibilidade maior para alguns ruídos, então para mim guitarra é insuportável. Música alta, pessoas gritando, gente batendo palma em espetáculo, por exemplo, para mim é insuportável. Nós somos mais sensíveis para alguns ruídos na vida cotidiana e ao mesmo tempo não entendemos outros, o que é bem contraditório. Eu tenho uma perda auditiva hoje equivalente à [de] uma senhora de 80 anos.”
Mas Milene diz que, se há preconceito com a perda auditiva dela, é velado. “Nunca tive problema em trabalho, em relacionamentos afetivos, nunca foi um problema pra mim, não que eu saiba, ninguém nunca verbalizou. Eu tive relacionamentos normais, como todas as pessoas. Lógico que, se estou num grupo de amigos e não escuto uma conversa ou outra, é um pouco mais complicado. Hoje sou dona da minha própria empresa. Tenho outras pessoas que são colaboradoras, mas eu sou a única funcionária. Então, quando eu vou para um parto, que é um lugar silencioso e a equipe está conversando, definindo algumas intervenções ou protocolos, enfim, eu não entendo, sussurros, eu não entendo. Sei que eu não consigo acompanhar as conversas, mas se esse preconceito existe ele é muito velado. E me ajuda muito o fato de ter o cabelo que tampa um pouco [o aparelho auditivo] e esteticamente é uma solução para mim.”
Milene tem sorte de não passar por preconceitos em seu cotidiano, mas a própria expressão “você é surda”, que ouvia quando ela era criança, já mostra o capacitismo, ou seja, o preconceito que tem como base a capacidade de outros seres humanos, principalmente na parcela da população com algum tipo de deficiência.
O capacitismo é uma forma de preconceito contra pessoas com deficiência, que envolve uma preconcepção sobre as capacidades que uma pessoa tem ou não devido a uma deficiência, e geralmente reduz uma pessoa a essa deficiência.
“Tal como ocorre com o racismo, o sexismo e as discriminações contra a população LGBTQIA+, o capacitismo é estrutural na sociedade brasileira. Ele está arraigado em quase todas as nossas práticas cotidianas. São atitudes capacitistas, por exemplo, presumir que uma pessoa com deficiência seja incapaz de realizar qualquer atividade que as ditas pessoas normais realizam. É fato que o modo como algumas pessoas com deficiência realiza atividades pode não ser o mesmo que outras pessoas sem deficiência realizam, mas, nem por isso, elas deixam de realizar ou as fazem de maneira errada e incompleta. Lembremos que todos nós realizamos atividades de vida diária de acordo com as nossas possibilidades”, define o cientista social Julian Simões, pós-doutorando na Universidade Federal de São Paulo.
Outro exemplo de atitude capacitista é a construção de ambientes pautados em apenas uma experiência corporal considerada a normal, a desejável e a saudável, completa Simões, que é membro do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia.
“Temos uma série de edifícios com portas de entrada, por exemplo, que dificultam o acesso de pessoas com cadeiras de rodas, pessoas com mobilidade reduzida, pessoas com crianças de colo, pessoas gordas, enfim, pessoas que não se encaixam na referida e excludente normatividade que atribui valor a alguns corpos como normais. Construir uma entrada específica para pessoas com deficiência, por exemplo, é capacitista, uma vez que reconhece a especificidade do corpo, mas atribui a essa especificidade um valor negativo indicando que tal corpo não se encaixa no que é considerado normal e que todas as pessoas fazem.”
A solução para este caso, ele sugere, “é projetar uma entrada única que seja capaz de contemplar pessoas em cadeiras de rodas, pessoas com crianças de colo, pessoas com deficiência visual, surdas ou com deficiência auditiva, bem como pessoas com mobilidade reduzida, gordas e pessoas sem deficiência". "É um esforço de desenho universal. Ou seja, não será preciso uma entrada específica para as pessoas sem deficiência – tomadas como as normais – e outra específica para pessoas com deficiência – tomadas como anormais”, completa.
O cientista social chama atenção para as expressões linguísticas segregacionistas adotadas no dia a dia. “A expressão “idiota e retardado” para colocar em xeque as manifestações de lógica e de raciocínio de alguém é um desses exemplos. Outros exemplos são: a expressão “mancada” para falar de deslizes nas condutas, uma vez que não mancar, segundo o que se crê popularmente, é considerado a atitude “normal e desejável” dos corpos sem deficiência; a expressão “não ter braços ou pernas suficientes” para quando queremos dizer que temos muitas tarefas a fazer e uma grande dificuldade para realizá-las por falta de contingente de pessoas; as expressões “está surdo?” ou “está cego” para questionar uma pessoa que, por algum motivo, não entendeu o que se comunica, seja por conta das barreiras sociais a ela impostas, seja porque adota outras formas de perceber o mundo social que a cerca”.
Simões completa que o capacitismo está relacionado a uma série de expressões naturalizadas como isentas de preconceito e discriminação, mas que guardam em comum uma concepção segregacionista que toma uma manifestação corporal como sendo a normal, a desejável e a perfeita. “Pesquisadoras e pesquisadores do tema estão chamando essa atitude de corponormatividade, ou seja, um conjunto de normas e regras que visa regular corpos diversos a partir de referências de corpos considerados normais e saudáveis.”
Quem está no mercado de trabalho e tem alguma deficiência sente mais o capacitismo, explica a psicóloga Andréa Chaves. “Nas organizações de trabalho isso é mais frequente, eu acredito. Frases do tipo: 'Dar uma de João sem braço', 'Parece cego em tiroteio', 'Agindo assim parece um autista'. Essas frases demonstram claramente a necessidade de rebaixar o outro, com comparações pejorativas. No mercado de trabalho, isso é frequente e parece inofensivo, quando na verdade é um modelo adoecido de estabelecer comparações.”
Na visão da psicóloga, o capacitismo no Brasil atinge principalmente os profissionais com deficiências que podem ser de natureza física, auditiva, visual, intelectual e também deficiências múltiplas. “O capacitismo é a falácia de que alguns seres humanos são inferiores a outros, em razão de alguma de suas características. E no Brasil infelizmente existe um emparelhamento de capacidade laboral x habilidades físicas.”
A psicóloga lembra que a Lei de Cotas, que há três décadas garante a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, veio cobrir uma lacuna. A medida para contratação desse público é prevista na Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (8.213/91).
“A Lei de Cotas vem para pagar uma dívida histórica de séculos de segregação, mas é como um financiamento imobiliário, o pagamento é baixo diante do saldo devedor. Acredito que, sem a Lei de Cotas, o mercado de trabalho não teria se aberto a pessoas com deficiência. Porém, é preciso treinar as organizações a colocarem valores na diferença. E não apenas querer contratar um “deficiente leve” como se isso fosse possível, apenas para cumprir a legislação. Mas temos referências bem-sucedidas de empresas que de fato começaram a colocar valor na diferença e a compreender que todos podem contribuir com as metas organizacionais.”
A Lei de Cotas estabelece que empresas com 100 ou mais empregados preencham uma parcela de seus cargos com pessoas com deficiência. A reserva de vagas depende do número total de empregados que a empresa tem.
Andrea Chaves, que tem deficiência visual, conta a própria experiência de trabalho. “Eu só enxergo de um olho e em Brasília fui a primeira mulher com deficiência a tripular uma viatura do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência]. Com limitações, mas nunca com restrições. E é assim que deveria caminhar a humanidade. Todo ser humano tem habilidades e competências e isso nos torna parceiros uns dos outros e não concorrentes”, considera.
Para o cientista social Julian Simões, é preciso garantir que sejam cumpridas as cotas, mas ele concorda que é necessário fazer mais do que isso. “Contratar pessoas com deficiência supõe garantir condições para que elas permaneçam no ambiente de trabalho, ou seja, garantia de acessibilidade, como também supõe garantir possibilidade de desenvolvimento profissional. Se continuarmos a presumir a incapacidade de pessoas com deficiência nos ambientes de trabalhos não estamos propiciando mudança social, e sim manutenção de preconceitos e o reforço de uma concepção integracionista [e não inclusiva] que joga a responsabilidade do que é coletivo para as pessoas com deficiência.”
Dessa maneira, a Lei de Cotas pode ser vista com um dos instrumentos que podem ser usados para enfrentar o capacitismo, considera Simões. “Para que isso ocorra, é preciso uma série de outras ações de mudança social. Precisamos de políticas públicas de enfrentamento a desigualdades, precisamos de ambientes acessíveis e da construção de uma nova forma de compreender e se relacionar com a deficiência.”
Autor de um estudo que identificou mais de 300 palavras de cunho racista, LGBTfóbico, xenófobo, capacitista e sexista, o doutor em linguística Thomas Daniel Finbow realizou o estudo a pedido de uma empresa que desenvolvia um aplicativo na forma de um “teclado antipreconceito” que sugeriria alternativas a expressões de cunho preconceituoso quando apareciam na linguagem do usuário.
Do levantamento feito pelo linguista nasceu o aplicativo Teclado Anti Preconceito, que fornece substituições toda vez em que uma forma de preconceito é escrita no celular.
“Meu pequeno estudo inicial não procurou calcular as frequências de ocorrência dos termos, mas espero que, nas fases posteriores, que os desenhadores planejam, esse fator seja contemplado. Basta dizer que linguagem capacitista é muito comum nas interações cotidianas, com palavras que se referem a questões de capacidade mental e psicológica e psiquiátrica provavelmente as mais usadas, por exemplo, 'retardado', 'débil mental', 'maluco', 'imbecil', isso é uma impressão minha, depois de levantar as expressões”.
Na visão do linguista, é possível evitar a linguagem capacitista. “A melhor maneira é informar-se sobre as preferências do interlocutor. Existem associações que representam diferentes grupos que podem prestar consultorias. Também existem diversos manuais de linguagem inclusiva na internet que podem ser consultados facilmente e que oferecem muitas dicas e soluções extremamente úteis. Embora ainda em fase inicial, o teclado antipreconceito também existe para isso”, recomenda Finbow.
Para o cientista social Julian Simões, evitar o capacitismo também exige empenho e ações concretas. “Não basta não ser capacitista, é preciso ser anticapacitista. Isso significa dizer que a primeira coisa que necessitamos fazer é reconhecer que vivemos em um país capacitista. Como disse antes, são atitudes arraigadas em nossa vida cotidiana que precisam ser repensadas e reconstruídas a partir de uma chave inclusiva e de valorização das múltiplas experiências dos corpos. Discutir o capacitismo e outras formas de discriminação na sala de aula, por exemplo, é fundamental e um bom começo.”
Simões diz acreditar que há ainda outras atitudes para enfrentar o capacitismo. “Formar profissionais que compreendam a deficiência como um fenômeno social e não do corpo individual é de suma importância. Daí creio existir a necessidade de disciplinas nos cursos técnicos e de graduação em que se discuta deficiência, acessibilidade e inclusão como forma de enfrentamento às desigualdades sociais”.
O cientista defende que é preciso dar visibilidade às pessoas com deficiência para que contem suas experiências e as barreiras sociais por elas enfrentadas diariamente.
“Dessa maneira, conseguimos colocar em perspectiva nossas atitudes e reconhecer que há uma multiplicidade de experiências possíveis. Em outros termos é dizer que, ao reconhecermos a diversidade como inerente à nossa condição de humanos, conseguimos entender que não há um jeito certo ou normal de fazer uma determinada tarefa. Conseguimos, ainda, desconstruir hierarquias corporais que valorizam os corpos sem deficiência e discriminam todas as outras manifestações corporais atrelando a eles noções de incapacidade, anormalidade e fragilidade, por exemplo”, finaliza o cientista.
Fonte: Agência Brasil