De família humilde, oriundo da rede pública de ensino e criado na periferia de Volta Redonda, interior do Rio de Janeiro, Luís Ricardo Catta Preta Silva Fulgoni, 35 anos, foi diagnosticado com autismo somente em 2021, aos 34 anos, após crises ocasionadas pela pandemia. Com o feminícidio da irmã e em busca de contribuir para um mundo mais justo e inclusivo, Fulgoni decidiu seguir na magistratura. “Hoje, a minha missão é quebrar essa barreira do preconceito e fazer com que outras pessoas autistas nunca deixem de sonhar”, afirma.
Até se estabelecer na magistratura, o caminho que Fulgoni trilhou não foi nada fácil. Natural do bairro Bom Jesus do Itabapoana, cresceu junto com os avós maternos, a mãe e a irmã mais nova, com a qual era muito apegado. “Não chegamos a passar fome, mas lidamos muito com a falta de água, luz e saneamento básico. Até queda de morro eu já presenciei”, lembra.
Recorda, ainda, que era uma criança introspectiva, fechada, que não gostava de se integrar. “Na escola foi onde eu me encontrei. Gostava muito de estudar.” Por ser de família humilde, — o pai era garçom de pizzaria, a mãe aposentada aos 20 anos por invalidez, devido a complicações no rim, o avô trabalhava na informalidade e a avó dona de casa — Fulgoni sempre estudou em escola pública.
No ensino médio, estudou como bolsista em uma escola técnica da Companhia Siderúrgica Nacional. “Meu pai ajudava a pagar o material. Consegui um ensino de qualidade graças a essa bolsa”, ressalta.
Ao concluir o ensino médio, no fim de 2004, foi aprovado no concurso do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em janeiro do ano seguinte. Como ainda não tinha 18 anos, a ocupação da vaga ocorreu em abril, quando atingiu a maioridade.
Além do concurso, Luís também foi aprovado em dois vestibulares. Durante o trabalho como técnico do INSS, se interessou por normas técnicas e, depois de fazer a prova para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), começou a estudar direito no Centro Universitário Geraldo Di Biase (UGB) pelo Programa Universidade para Todos (ProUni).
Outro motivo que levou Luís a escolher o curso foi a irmã, Priscilla, brutalmente assassinada pelo namorado. Fulgoni destaca que que era bastante apegado à irmã e que os dois mantinham um laço afetivo muito forte. “Ela era extrovertida, praticamente me obrigava a brincar com as outras crianças. Nos apoiávamos. Lembro até hoje do dia que ela me ensinou a amarrar o cadarço do tênis, quando eu tinha 16 anos.”
O feminicídio ocorreu em frente à casa do pai, após Priscilla terminar o namoro de 20 anos. Ela levou seis facadas e morreu na hora. O criminoso fugiu do local, mas foi preso duas semanas depois, julgado e condenado a 9 anos de reclusão.Fulgoni ajudou na captura do assassino, que depois de cometer o crime passou a fazer ligações telefônicas para a sua casa, por 10 dias, perguntando sobre o estado da vítima. Como na época o sistema de identificação de chamadas telefônicas não era acessível, levou um tempo para que a polícia instalasse o equipamento na casa dele. Só então o criminoso foi capturado.
“Na periferia, o Estado não chega”, critica. O fato levou Fulgoni a promover um atendimento mais humano no INSS. Para ele, o servidor público "é o elo humano entre a frieza burocrática do Estado e a sociedade". Em 2015, ao ser aprovado em concurso, passou a exercer o cargo de oficial de justiça. “Não tinha a menor pretensão de ser juiz. Queria apenas exercer um cargo melhor, que me proporcionasse maior estabilidade financeira” diz ele, que considerava inconcebível a ideia de acumular o cargo de técnico do INSS com outra função.
Quatro anos depois de trabalhar como oficial de justiça, Fulgoni começou a se preparar para o ingresso na magistratura. “Estava incomodado com essa sociedade violenta, preconceituosa. Queria deixar um mundo melhor para a minha filha”, pondera. Ele estava avançando no concurso, mas quando chegou na última fase, a prova foi adiada devido a pandemia. A mudança súbita de rotina desencadeou várias crises. “Tive diversas, que se assemelhavam muito com a depressão. Cheguei a passar um dia todo na cama. Então, decidi procurar um médico”, conta.
Ao buscar apoio psiquiátrico pela quarta vez, a médica levantou a hipótese de que as crises se davam em razão de um autismo moderado. Fulgoni conta que ficou incrédulo ao ler sobre autismo e se identificar com o transtorno.
“Era um retrato fiel da minha vida. Me surpreendi porque achava que o autismo significava incapacidade, que não conseguiria trabalhar, mas isso estava longe de ser verdade”, diz.
Fulgoni passou por uma bateria de exames e avaliações neuropsicológicas — oito, ao todo — e, em quatro semanas, o laudo atestou autismo nível 1. “A mudança de moderado para leve, de acordo com o médico, se deu pela minha capacidade de contornar meus próprios limites.”
Ele afirma que depois que recebeu o diagnóstico, quem mais o apoiou foi seu genitor. “Meu pai se mostrou muito preocupado em entender e aprender mais sobre o autismo. Nos aproximamos muito desde então.”
Fulgoni relata, ainda, que tinha medo do preconceito no ambiente de trabalho, mas foi muito bem acolhido por outros juízes e pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), instituição que o ajudou com as dificuldades e garantiu-lhe todo o suporte necessário.
Hoje, o juiz defende que é necessário falar sobre esse assunto para que a barreira do preconceito seja rompida. “Sinto que, por ter chegado até aqui, é a minha missão falar, expor, incentivar outras pessoas autistas a seguirem seus sonhos. Se tem uma mensagem que eu queria passar, é ‘nunca deixe de sonhar’. O sonho é o combustível da vida”, destacou.
A posse de Fulgoni como juiz substituto no TJ-PR ocorreu em 29 de julho deste ano. O tribunal promove, atualmente, um curso de formação inicial para preparar os novos juízes. Fonte: Correio Braziliense