Eles são brancos, negros, assalariados, empresários e têm entre 30 e 40 anos. Os homens que cometem feminicídio passam despercebidos na multidão, muitos nem sequer têm antecedentes criminais. Mudam de endereço, mas não mudam de padrão. São possessivos, machistas e manipuladores e agem motivados por uma falsa ideia de que o fato de ser do sexo masculino está associado a um privilégio e ao poder de decidir sobre a vida ou a morte de uma mulher, segundo afirmam especialistas ouvidas pelo R7.
No Distrito Federal, o ciúme e a posse sobre a vítima foram os principais argumentos dos assassinos em pelo menos 90% dos casos registrados na capital do país, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública. Somente em 2023, 26 mulheres tiveram a vida interrompida por homens.
A psicóloga Maisa Guimarães explica que o raciocínio desse tipo de homem é invertido. Segundo ela, não há uma capacidade cognitiva para refletir sobre o próprio comportamento. "Então, surgem as demandas de que você não vai falar com tal pessoa, você não vai visitar a família, vai sair do trabalho, usar aplicativo para saber a localização", afirma.
"Essa exigência de controle sobre o outro é uma desculpa para minimizar os incômodos do ciúme. Desculpa muito perigosa. Aumenta o controle, a recusa, a negativa do outro e não reconhece o desejo da outra pessoa, o que é muito próximo de uma situação de violência", completa.
Mas a pergunta que não quer calar, segundo Maisa, é a seguinte: se ciúme é um sentimento humano, que homens e mulheres sentem, por que está associado a uma violência na experiência masculina?
“Porque ele [o ciúme] vem desse contexto cultural de que homens que decidem ou eles acreditam que têm o privilégio e o poder de decidir sobre o desejo dessas mulheres. Seja não aceitando que elas não querem mais o relacionamento, seja achando que tem o poder de decidir que não vão trabalhar, ter amigas, ter uma vida à parte”. Maisa Guimarães, psicóloga.
Comportamento assustador
Ao ver um vídeo recente de uma tentativa de feminicídio na Quadra 406 do Recanto das Emas, região a 21 km do centro de Brasília, uma reação recorrente é a de espanto, de achar que o homem "enlouqueceu". Nas imagens, o homem, de 56 anos, policial da reserva, tenta matar a esposa.
Os dois chegam em carros separados e descem, e ele vai em direção ao veículo da esposa. Ao sair do carro, a mulher começa a ser espancada, é derrubada no chão, arrastada, esmurrada. Não satisfeito, o homem entra no veículo e finge que vai embora. Volta e parte com o carro para cima da esposa por pelo menos três vezes.
O homem que mata a mulher está louco, com problemas psicológicos? A psicóloga e psicanalista Cristina Almeida afirma que a "loucura" é algo relativo.
“A nossa cultura é machista, sim, mas muita coisa pode ser mudada. Porém, a própria sociedade não quer. As pessoas estão vendo que há algo errado com elas ou com seus cônjuges e não tomam as providências, por vezes fazem piada da própria situação”. Cristina Almeida, psicanalista.
Segundo a psicóloga e psicanalista, o Estado também se omite dessa responsabilidade.
"Por que existe a Lei Maria da Penha, por que o Estado brasileiro quis? Não. Foi porque a Comissão Interamericana de Direitos Humanos forçou a instituir a Lei Maria da Penha. Do contrário, não teríamos ela a nosso favor", lembra.
Contudo, esses agressores e assassinos podem, sim, apresentar alguns quadros psicopatológicos que figuram entre o campo da psicose e o da perversão, como transtornos mentais, esquizofrenia e transtorno de bipolaridade e de conduta, além de transtorno delirante, opositor desafiante e de personalidade antissocial, segundo a psicóloga.
"As ameaças se manifestam por meio dos atos que não foram capazes de ser expressados através da fala. Além disso, o diálogo entre as pessoas tem diminuído, principalmente os presenciais, graças à tecnologia. Então, pensar nas múltiplas motivações que levam uma pessoa a cometer um crime que põe fim à vida alheia, especificamente a de seu ex-parceiro conjugal, remete a uma ameaça psíquica que implica a complexidade de diversos fatores."
"Por exemplo, como foram a gestação, o nascimento, a infância, a puberdade, a adolescência e a fase adulta desse agressor? Quais foram e quais são os desejos dele? O ataque ao feminino está no excesso, na ultrapassagem dos limites, e não há justificativa plausível para não termos ainda ações pontuais de prevenção contra o feminicídio e para aplicação das normas de controle”, enfatiza Cristina Almeida.
O "cara comum"
Especialista em comportamento humano, culturas e sociedades, a antropóloga Isabela Venturoza trabalha desde 2009 com grupos reflexivos e de responsabilização para homens autuados por crimes de violência contra a mulher na cidade de São Paulo. Passam pelo coletivo homens de todas as raças, que têm no currículo somente o ensino fundamental, outros são empresários. Há autuação de homens desempregados e também estrangeiros.
"Uma frase que falamos aqui é: a violência contra a mulher na sociedade brasileira é extremamente democrática. Dificilmente você vai encontrar um perfil fechado. Recentemente, tivemos um jovem bissexual, denunciado pela ficante, e um senhor de 80 anos, já avô, e com problemas de mobilidade, sendo tratados aqui no grupo", revela.
Isabela afirma que o que une esses homens é o padrão de sociedade que os coloca como os detentores da última palavra. "O padrão são referenciais que colocam o homem como aquele que pode trair, não pode ser traído. O que une os homens é um modelo de masculinidade que vai orientar todos eles e colocar as mulheres em uma condição subalterna. Está muito mais em um terreno simbólico no imaginário desses homens do que em marcadores sociais", afirma Isabela, que também é professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretora-presidente da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Para não continuar "enxugando o chão com uma torneira aberta", Isabela defende a potencialização dos trabalhos feitos com os agressores. Na ONG em que ela atua, os homens denunciados por crimes de violência passam cerca de quatro meses em grupos de ressocialização, reflexão e escuta. A cada semana, eles têm encontros com uma equipe multidisciplinar.
"São psicólogos, advogados, em um ambiente de conversas para refletir sobre a qualidade das relações, dos laços profundos, de como lidar com isso, sobre a saúde do homem, entre diferentes homens, no sentido de sensibilizar e ser protagonista dessa violência. Pensar nos filhos, em outras namoradas e nos homens que estão ao redor", conta.
Como reconhecer um agressor em potencial?
Apesar de a violência doméstica ter várias faces e especificidades, a psicóloga americana Lenore Walker identificou que as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido.
Segundo a vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Almeida, existem diversos sinais que muitas vezes são "naturalizados" pelas mulheres.
"Sempre com atitudes de exposição, de qualificar, de falar da imagem. Se vai [a mulher] fazer um curso, diz que não vai passar, conta história de mulheres que tentaram e não conseguiram. Mesmo a tal brincadeira, as piadas vão ser no sentido de desqualificar aquela mulher, de comparar ela a outras mulheres", diz Regina.
Vítimas de tentativa de feminicídio relatam praticamente a mesma história. O homem faz uma reclamação, cria um clima tenso, irrita-se, xinga, agride, bate e, depois, se desculpa e pede perdão.
"[O homem] pensa apenas no seu ego, em satisfazer as suas vontades, em dizer o que quer e o que entende e deixar a mulher no lugar do desprezo, da submissão, do desconforto, da insatisfação, do empobrecimento da sua dignidade", explica.
Alguns comportamentos masculinos para com a companheira, a namorada e a esposa podem ser confundidos com cuidado, proteção ou preocupação.
Contudo, a violência começa com atitudes simples. Uma crítica à roupa, um pedido para tirar a maquiagem ou não sair com aquele grupo de amigos ou amigas, pedir para excluir as redes sociais ou para monitorar o telefone e proibir a mulher de algo, como estudar e trabalhar. Para as especialistas ouvidas pelo R7, esses sinais fazem parte de uma linha crescente de violência psicológica.
Como denunciar
Denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas à Polícia Militar, pelo 190; à Central de Atendimento à Mulher, pelo 180; ou em uma das delegacias especiais de atendimento à mulher, que funcionam 24 horas.
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Fonte: R7.